Há exatos 80 anos, o mar equatorial silenciou a tripulação do Cruzador “Bahia”, um dos mais antigos e simbólicos navios de guerra da Marinha do Brasil (MB). Na manhã de 4 de julho de 1945, durante um exercício de tiro antiaéreo, uma rajada disparada por uma das metralhadoras, acidentalmente apontada para a popa, atingiu cargas de profundidade inflamáveis, provocando uma explosão que gerou focos de incêndio e destruição instantânea, marcando para sempre a história naval brasileira.
A tragédia, ocorrida já no fim da Segunda Guerra Mundial, levou o navio ao fundo do mar do litoral brasileiro em menos de três minutos. Inicialmente, chegou-se a cogitar a hipótese de um ataque por submarino alemão, mas investigações técnicas comprovaram falha de procedimento no manuseio do armamento.
A bordo do velho guerreiro
Veterano dos mares, o Cruzador “Bahia” havia servido na Primeira Guerra Mundial e, durante o segundo grande conflito, atuava na proteção de aviões aliados em missões transatlânticas. Naquela missão final, partiu do porto do Recife (PE) em 30 de junho de 1945, com destino à sua estação de serviço próxima a Natal (RN).
A bordo estavam 372 homens que, após a explosão, tentaram alcançar as balsas disponíveis. Muitos desapareceram sob as águas do Atlântico e, dos que inicialmente se salvaram, apenas 36 sobreviveram após dias de agonia em alto-mar.
O livro História Naval Brasileira (volume 5, tomo II) relembra esse episódio ainda pouco conhecido pela sociedade civil. Segundo dados da obra, durante quase uma semana, 280 homens enfrentaram o mar aberto. Destes, 271 ocuparam 17 balsas sob o sol escaldante, sem água potável e com suprimentos escassos.
A insolação, a sede extrema e o sofrimento transformaram os sobreviventes em novas vítimas. Muitos não resistiram à exposição prolongada, às queimaduras e aos ferimentos. As balsas, sobrecarregadas e danificadas, não ofereciam abrigo nem esperança e, em uma delas, restaram apenas oito homens vivos ao final do resgate. Em outra, nenhum ocupante sobreviveu. Dos 271 tripulantes que alcançaram as pequenas embarcações, 235 morreram.
A última balsa foi localizada em 8 de julho por um cargueiro britânico, que resgatou 33 homens, dos quais cinco faleceram nos dias seguintes. Os demais foram socorridos por navios brasileiros.
Legado e memória
Entre os mortos estavam 17 oficiais, 15 suboficiais, 42 sargentos, 224 cabos e marinheiros, 29 taifeiros, cinco fuzileiros navais e quatro norte-americanos. Entre os poucos sobreviventes, o então Primeiro-Tenente Lúcio Torres Dias relatou em detalhes o ocorrido, tornando-se uma das principais vozes da memória do navio, carinhosamente chamado até hoje de “Bahia”.
Confira, abaixo, um trecho do depoimento dele, extraído do livro Flores ao Mar: os naufrágios navais brasileiros na Segunda Guerra Mundial, de Raul Coelho Barreto Neto:
Densos rolos de fumaça escura e sufocante mal deixavam ver o grande número de mortos e uns poucos feridos que se movimentavam com dificuldade. Tentei avançar um pouco em cima da fumaça, mas ela era cáustica. […]. Depois eu disse: ‘Em uma fumaceira dessas, o que é que vou fazer?’. Quando retornei para minha posição de controle geral das máquinas, notei que a praça de turbinas estava começando a ser alagada muito rápido. […] Ali eu sabia que estava atuando sozinho. Cada um agia por conta própria; […] Havia um desequilíbrio muito forte no navio. As ferragens estavam retorcidas. ‘Não posso fazer mais nada aqui!’. A água já estava bem mais alta. Gritei lá para baixo. Ainda havia um ou dois homens por lá: ‘Abandona a praça, vamos subir […]!’. Não era mais um oficial de serviço. Era agora um candidato a sobrevivente.”
O afundamento, considerado pelos historiadores como a maior tragédia da história naval brasileira, gerou mudanças significativas nos procedimentos de segurança operacional da Força. Mais do que um acidente, o episódio simboliza os perigos invisíveis e cotidianos de uma guerra que, para o Brasil, ainda não havia terminado, mesmo após a rendição da Alemanha.
Oito décadas depois, permanece o compromisso de honrar os que perderam suas vidas. O silêncio do mar, que um dia também calou o gigante de guerra, ainda guarda ecos de heroísmo e lições aprendidas.
Para o doutor em história, Primeiro-Sargento (Armamentista) Robert Wagner Porto da Silva Castro, recordar esse episódio é fundamental para manter viva a verdade histórica.
“Apesar de se configurar um acidente, é algo que só pode ocorrer quando a gente se expõe ao perigo, e o ‘Bahia’ estava em exposição de guerra, cumprindo a missão dele. Precisamos compreender que, naquele instante, aeronavegar sobre o Oceano Atlântico não era fácil, era preciso referência no mar e quem desempenhava esse papel eram os navios de guerra, assim como o “Bahia”, que estava ocupando um espaço chamado de estação de guerra. Acho que é importante destacar esse esforço e o sacrifício da tripulação em prol do cumprimento da missão, até o último instante”, pontuou.
Embora a presença da Marinha do Brasil na Segunda Guerra Mundial tenha proporcionado avanços técnicos, operacionais e logísticos, o custo humano foi alto. Entre naufrágios causados por inimigos e acidentes, 486 militares da Marinha perderam a vida ao longo do conflito. Somados aos 982 civis e tripulantes mortos em 33 ataques a navios mercantes brasileiros, o saldo ultrapassa 1.400 vidas brasileiras perdidas no mar.
Apesar disso, o esforço foi decisivo. Foram 3.164 navios comboiados — sendo 1.577 brasileiros e 1.041 norte-americanos — com 99% de sucesso nas missões de escolta. Ao término da guerra, a MB consolidou maior capacidade de controle marítimo, incorporou doutrinas modernas e amadureceu sua experiência de combate.
Além do naufrágio do Cruzador “Bahia”, a Marinha sofreu outras perdas. A primeira ocorreu em 19 de julho de 1944, com o torpedeamento do Navio-Auxiliar Vital de Oliveira por um submarino alemão na costa do Rio de Janeiro. Dois dias depois, a Corveta Camaquã virou e afundou nas proximidades de Recife (PE), após ser atingida por um golpe de mar.
Você poderá acompanhar aqui, nas respectivas datas, as próximas matérias especiais sobre esses outros afundamentos.
Sobre o Cruzador “Bahia”
O navio, à época, era comandado pelo Capitão de Fragata Garcia D’Ávila Pires de Albuquerque. Afundado a cerca de 500 milhas náuticas de Recife, a embarcação nunca foi encontrada.
Lançado ao mar em 1909, na Inglaterra, o “Bahia” foi incorporado à Esquadra Brasileira em 21 de maio de 1910. Símbolo da modernização naval do Brasil no início do século XX, possuía 122 metros de comprimento, velocidade de até 27 nós (50 km/h) e contava com couraças de proteção. Durante a Primeira Guerra Mundial, foi o navio-capitânia da Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG), enfrentando tanto os riscos do conflito quanto a pandemia de gripe espanhola, que atingiu grande parte da tripulação em 1918.
Os números do Cruzador “Bahia”
Tipo: Cruzador-ligeiro;
Estaleiro: Armstrong, New-Castle-on-Tyne (Inglaterra);
Lançamento ao mar: 20 de janeiro de 1909;
Incorporação à Marinha do Brasil: 21 de maio de 1910;
Afundamento: 4 de julho de 1945;
Comprimento total: 122,38 m;
Deslocamento: 3.100 toneladas;
Armamento original: 10 canhões Armstrong de 120 mm, 6 canhões de 47 mm, 2 tubos lança-torpedos de 450 mm;
Tripulação: 20 oficiais e 355 praças.
Linha do Tempo
1910 – Incorporado à Marinha do Brasil;
1918 – Torna-se navio-capitânia da DNOG na Primeira Guerra Mundial;
1924–1927 – Passa por grande modernização;
1942 – Integra a recém-criada Força Naval do Nordeste na Segunda Guerra Mundial;
1945 – Afunda em missão de apoio à ponte aérea aliada, no Atlântico Equatorial, a cerca de 500 milhas náuticas de Recife (PE).
Participação na Segunda Guerra Mundial
67 comboios protegidos;
15 patrulhas navais;
101.971 milhas navegadas;
Mais de 700 navios mercantes escoltados;
357,5 dias de mar em missões de guerra.
Para conhecer mais detalhes sobre a história do Cruzador Bahia, visite o hotsite oficial da Marinha do Brasil.
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